Memórias de “tia Eva”

Entende-se por Memória o compartilhamento de lembranças e discursos sobre o passado, ancorados nos interesses e visões de mundo do presente. As narrativas de memória, expressas na História Oral, são fontes documentais utilizadas pela História. Portanto, o uso da História Oral na produção do conhecimento histórico está articulado com a memória.

Os principais elementos constituintes da memória são:

  • Eventos do passado, vividos ou valorizados por interesse;
  • Eventos vividos “por tabela”, ou seja, a memória pode ser sobre algo que o indivíduo não viveu, mas se identifica, porque ela é coletiva ou compartilhada por um grupo do qual o indivíduo faça parte;
  • Lugares de memória (museus, arquivos, monumentos, cerimônias públicas, festas, datas comemorativas, estátuas, entre outros).

A seguir, você terá acesso a fragmentos de memórias sobre a tia Eva, narrativas orais coletadas em entrevistas com lideranças políticas da Comunidade Quilombola Tia Eva, a partir de uma pesquisa de campo realizada sob a metodologia da História Oral.

Seu Sérgio Antônio da Silva, popularmente conhecido como Seu Michel (bisneto de tia Eva e uma das lideranças da comunidade). Foi entrevistado pelo autor desta pesquisa no dia 26/01/2021, em sua residência, localizada na comunidade.

Fonte: página do Facebook da comunidade

Protagonismo

“Tia Eva era uma pessoa que foi escrava, mas uma mulher muito inteligente”.

“Ela (tia Eva) teve essa ideia de requerer isso aqui, legalizar. E nós, que não fomos escravos e nem nada, não tivemos essa mesma inteligência que ela tem”.

Liderança religiosa

“Eu tenho um senhor que me contou que conheceu ela e viu ela benzendo na porta da igreja uma pessoa que estava com dor de cabeça. Colocava um copo branco com água na cabeça da pessoa e começava a rezar. Diz ele: “Michel, eu vi com meus próprios olhos, a água fervia como se estivesse no fogo”. Ela jogava aquela água fora”.

“E muitas histórias que a gente vê, por exemplo, esse terreno aqui que a gente ganhou pra fazer o colégio. Você já ouviu falar da Irany Caovila? Ela falou: “Michel, eu estava doente e fiz voto, vi você dando entrevista na televisão, falando da história da tia Eva, e eu fiz um voto que, se eu sarasse, eu queria fazer uma doação de um terreno pra fazer um colégio aí e com esse pensamento, e a tia Eva também foi através de conversa que ela veio e foi curada”.

Promessa e devoção a São Benedito

“Essa promessa da tia Eva, que chegasse aqui e ia ser feliz, chegou com Joana, Lázara e Sebastiana. E no momento que ela fez essa promessa, que ela chegou aqui e comprou essa área de terra em 1910, pagando 85 mil réis”.

“Mas a tia Eva chegando aqui, comprou esse terreno, chamava-se Milo Javari Barem que deu o título de terra”.

“Foi uma promessa que ela fez, se chegasse aqui e desse tudo certo, ela compraria o terreno e construiria. Essa promessa ela fez lá ainda, se chegasse aqui. E ela também tinha uma ferida na perna, a minha mãe contava essa história, com essa promessa que ela fez de construir, fez a promessa e sarou e construiu essa capelinha. Primeiro ela construiu em 1912 de madeira, eu não cheguei a conhecer, mas depois construiu essa de 1919”.

 

Seu Otávio Gomes de Araújo (in memoriam), popularmente conhecido como Seu Tuti (bisneto de tia Eva). Foi entrevistado pelo autor desta pesquisa no dia 01/02/2021, em sua residência, localizada na comunidade.

Fonte: RIBEIRO, 2014, p. 55

Protagonismo

“O conhecimento que eu tenho da vovó Eva, que ela veio de Goiás, trouxe três filhas, Sebastiana, Joana e Lázara. Sebastiana e Joana ficou aqui. Sebastiana é mãe da minha mãe. E Eva Maria de Jesus é a mãe das três filhas. Tia Joana teve seis filhos. E a tia Lázara foi para Furnas. Lá eu não sei contar quase nada. Agora, as duas que ficaram aqui, a gente sabe os filhos delas, quais foram”.

“Lá em Goiás eles combinaram para formar uma comitiva, carro de boi, e de lá partiram para o Mato Grosso, e parece que de Jataí o nome da cidade. E chegando aqui isso era tudo de devoluto, tudo aberto”.

Promessa

“Ela tinha uma ferida na perna incurável lá em Goiás, ela falou assim: “Se eu chegar em Mato Grosso, eu sarar dessa ferida, eu vou formar a igreja de São Benedito”. E ela chegando aqui ela sarou, e foi tirando esmola, isso foi em 1919, construiu a primeira capelinha e depois fez essa em 1919”.

Morte de tia Eva

“Em 26 (1926) ela faleceu e enterrou ela bem na frente da igreja, Eva Maria de Jesus, e formou um cemitério ali na frente da igreja, mais ou menos 20 por 30 o quadrado. Tinha o cruzeiro. Aquele pessoal que ia morrendo, ia enterrando ali mesmo, então lá tem um neto dela, que é o tio Joaquim, enterrado até hoje, uma filha dela que é a Joana, e ela também está enterrada ali. Quando fazia 46 anos que ela tinha falecido, eu arranquei ela e fiz um túmulo dentro da igreja, peguei os ossos dela, coloquei em uma caixa, quando você entra na igreja daqui pra lá, está o túmulo dela lá com os dizeres e os ossos dela, fiz quatro paredes de concreto, fiz uma tampa de concreto, coloquei a cruz e está lá”.

 

Dona Neuza Jerônima Rosa dos Santos (tataraneta de tia Eva). Foi entrevistada pelo autor desta pesquisa no dia 02/02/2021, em sua residência, localizada na comunidade.

Fonte: RIBEIRO, 2014, p. 47

Protagonismo

“A minha avó Eva ela era boa benzedeira e era parteira, então muitas pessoas importantes dessa cidade nasceram da mão dela. Ela chegou aqui praticamente junto com Antônio Pereira. Eles falam que quando ele chegou tinha um ajuntamento de gente, uns negros, na cabeceira de um córrego, que é esse que passa aí agora. Então, era a minha tataravó que já estava por aqui quando ele chegou, mas não consta no livro, não se fala, porque era uma negra, era uma escrava, ex-escrava, mulher, então a discriminação é grande em cima”.

Liderança religiosa

“A vovó Eva, a história dela é uma história fantástica porque ela tinha um marido, mas quem gerenciava a vida dela era ela mesma, ela era quem tomava as posições das coisas. Diz-se que ela tinha uma ferida na perna, e ela sempre falava, pedia para São Benedito e Nossa Senhora da Aparecida, que ajudassem ela a sarar daquela ferida e que tivesse a graça de ser liberta, porque se ela tivesse a graça de ser liberta, ela iria vir embora para Mato Grosso do Sul. Para Mato Grosso, aqui não era Mato Grosso do Sul nessa época. E ao chegar aqui, quando ela estivesse localizada, ela ia construir uma igreja para São Benedito e Nossa Senhora da Aparecida. E ela, enquanto vida tivesse, enquanto existisse um herdeiro dela, fosse filho, neto, bisneto, o que fosse, mas que tivesse o sangue dela, era para fazer essa promessa todos os anos”.

 

Dona Vânia Lucia Baptista Duarte, tataraneta de tia Eva. Foi entrevistada pelo autor desta pesquisa no dia 01/02/2021, em sua residência, localizada na comunidade.

Fonte: RIBEIRO, 2014, p. 61

Protagonismo

“A história da tia Eva eu conheci dentro da minha casa, com a minha avó. Ela me falava da pessoa, do jeito e personalidade da tia Eva. Uma mulher guerreira lutadora que ela viveu na condição de escravizada é que conseguiu se liberta ainda lá no interior de Goiás veio para cá”.

Promessa e devoção a São Benedito

“Mas a tia Eva vem com uma ferida em uma de suas pernas. Faz promessa ao seu santo de devoção que era São Benedito e se compromete, caso ela recebesse a cura, ela iria fazer uma igreja para São Benedito, seu santo de devoção e realizar uma festa para homenagear Santo”.

 

 

Seu Ronaldo Jeferson da Silva, tataraneto de tia Eva e presidente da Associação Beneficente dos Descendentes de Tia Eva. Foi entrevistado pelo autor desta pesquisa no dia 02/01/2021, em sua residência, localizada na comunidade.

Fonte: Fundação de Cultura do MS

Protagonismo

“Tia Eva com a filhas e algumas pessoas na caminhada com ela, instalou-se aqui, na região do antigo Cascudo e aí, de lá para cá, ela lutou e batalhou por essas terras, que hoje a gente está numa briga danada aí para ver se consegue regularizar, escriturar, vamos dizer assim, as terras da comunidade – que já foram maiores”.

“E a história da Tia Eva é assim, confunde-se com a criação de Campo Grande. O José Pereira chegou daquele outro lado de lá, fazendeiro, um burguês, e ela chegou do lado de cá. Diz a história de José Pereira que quando ele chegou já havia uma comunidade ribeirinha na beira do rio aqui, então a gente entende que essa comunidade era a comunidade Tia Eva. Quer dizer, ele chegou e a Tia Eva já estava. Mas como ele chegou com um poder de construção maior, se tornou fundador de Campo Grande. E a comunidade hoje luta para que a memória de Tia Eva não fique no esquecimento”.