Formação e Localização

A formação da Comunidade Quilombola Tia Eva está intrinsicamente ligada à trajetória e o protagonismo da matriarca Eva Maria de Jesus. Nascida escrava, no interior de Goiás, obteve a alforria por volta dos 50 anos de idade. No final do século XIX, migrou para o sul de Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul), onde trabalhou como curandeira, cozinheira, lavadeira, parteira e benzedeira. Com recursos próprios, adquiriu as terras onde hoje está localizada a comunidade quilombola. Devota de São Benedito, construiu uma igreja para o santo (a segunda mais antiga da cidade) como pagamento de uma promessa e instituiu anualmente uma festa em homenagem ao padroeiro da comunidade, que é realizada todo mês de maio pelos seus descendentes.

Tia Eva chegou nas terras onde está localizada Campo Grande no ano de 1905, juntamente com uma comitiva de negros que saíram do interior de Goiás em busca de terras vagas no sul do estado de Mato Grosso. Tia Eva, suas filhas, genro, neto, seu companheiro Adão e outros libertos se instalaram em uma área de mata próximo ao córrego Segredo, inicialmente denominada como Olho D’água e posteriormente Cascudo. A escolha por essa região se deu  por ser inadequada para a criação de gado (atividade econômica predominante na época) e, portanto, menos valorizada e cobiçada. Quando ocorreu a fixação da comunidade de negros na região do Cascudo, a Vila De Santo Antônio de Campo Grande não passava de um pequeno povoado, onde boa parte da população morava em fazendas de gado. O território inicialmente ocupado localizava-se cerca de 4 quilômetros do centro da Vila Santo Antônio de Campo Grande.

A chegada de tia Eva e sua comitiva na região onde está situada Campo Grande é um ponto sensível de conflito entre a memória oficial e dominante e a memória subterrânea. De acordo com Michael Pollak (1989), a memória é uma operação coletiva dos acontecimentos e interpretações do passado, que ajuda a definir, delimitar e reforçar a coesão dos grupos em torno da memória. As disputas nesse campo se referem à memória da fundação da cidade de Campo Grande, na qual o protagonismo de tia Eva ocupa um espaço desvalorizado na história do município.

A memória oficial e dominante sobre essa temática considera que o mineiro José Antônio Pereira liderou uma comitiva que se instalou, de forma pioneira, na região onde está situada a cidade de Campo Grande em agosto de 1875. Entretanto, pesquisas recentes em torno das memórias dos membros da comunidade apontam que Tia Eva já estava na região quando o migrante José Antônio Pereira se fixou na cidade. De acordo com a historiadora Alisolete Antonia dos Santos Weingärtner, a memória em torno de tia Eva começou a romper com o silêncio sobre o protagonismo da matriarca na história de Campo Grande.

A história oral admite que José Antônio Pereira não é o primeiro desbravador a instalar moradia na confluência dos córregos Prosa e Segredo, ela aponta também, a existência de uma comunidade negra, no Cascudo, hoje Bairro São Francisco, contemporânea à chegada dos primeiros desbravadores descendentes de portugueses (WEINGÄRTNER, 1995, p. 4).

A figura 1 a seguir situa a área ocupada por tia Eva e seus descendentes e a distância em relação à Vila Santo Antônio de Campo Grande, atual capital do estado de Mato Grosso do Sul.

Figura 1 – Mapa de 1919 com a localização da comunidade

Fonte: CONGRO, apud, PLÍNIO DOS SANTOS, 2010, p. 272.

De acordo com Seu Sérgio Antônio da Silva, bisneto da matriarca da comunidade, mais conhecido como Seu Michel, tia Eva regularizou a posse da sua terra junto ao intendente da comarca de Campo Grande, Nilo Javary Barem, pelo valor de 85 mil réis. Tal quantia foi reunida por meio da venda de doces e hortaliças produzidos na comunidade e comercializados no centro da vila, além das doações feitas à tia Eva, em razão da atividade que exercia como benzedeira e parteira.

Nas terras da comunidade da tia Eva, os negros trabalhavam na roça, produziam doces (especialidade da tia Eva), azeite e manufaturas de objetos de madeira. Além dessas atividades, haviam mulheres que trabalhavam como lavadeiras, parteiras, cozinheiras e empregadas domésticas, bem como homens que se dedicavam à construção civil em áreas urbanas de Campo Grande.

A partir da década de 1940, o município de Campo Grande sofreu um intenso crescimento urbano que afetou a Comunidade Quilombola Tia Eva, que até esse período era uma área rural voltada ao plantio e criação de animais. No ano de 1941 foi assinado o Decreto nº 39 pelo prefeito Eduardo Olímpio Machado. Este decreto dividiu a cidade em quatro áreas: central, industrial, residencial e mista. A partir desse decreto, houve uma grande diminuição das terras tradicionais ocupadas pelos descendentes de tia Eva, já que as atividades econômicas realizadas no território passaram a ser proibidas pelo decreto.

Nas figuras 2 e 3 abaixo observa-se a expansão urbana da cidade de Campo Grande entre os anos de 1909 e 1999. Nota-se que a Comunidade Quilombola Tia Eva (em verde) surge como uma comunidade rural e aos poucos foi envolvida pelo crescimento urbano de Campo Grande. O processo mais intenso de expansão urbana pode ser verificado entre as décadas de 1969 e 1979, pois neste período Campo Grande tornou-se capital de Mato Grosso do Sul e englobou praticamente toda a área original da Comunidade Quilombola Tia Eva, transformando a área, até então rural, em urbana.

Figura 2 – Expansão urbana de Campo Grande/MS (1909-1939)

Fonte: PLÍNIO DOS SANTOS, 2010, p. 318

Figura 3 – Expansão urbana de Campo Grande/MS (1949-1999)

Fonte: PLÍNIO DOS SANTOS, 2010, p. 318

De acordo com o antropólogo Plínio dos Santos (2010), cerca de 45% das terras originais da comunidade fundada por tia Eva não se encontram mais com os seus descendentes. O crescimento demográfico da comunidade, a proibição de certas atividades econômicas tradicionais, a especulação fundiária e a falta de oportunidade de trabalho foram algumas das motivações para que parte do território original, fundado por tia Eva, fosse reduzido ao longo dos anos. Atualmente, o território da Comunidade Quilombola Tia Eva identificado e delimitado pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) possui área de 21,5949 hectares, abrigando 136 famílias descendentes de tia Eva (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 2018).

A comunidade conta com o abastecimento de energia elétrica, asfaltamento nas três vias que cortam a comunidade (rua Canaã, rua Eva Maria de Jesus e rua Ciro Nantes da Silveira), CEINF Eva Maria de Jesus (creche), Escola Estadual Antônio Delfino Pereira (escola de educação básica), linhas regulares de transporte coletivo, Unidade Básica da Saúde da Família São Benedito,  Igreja de São Benedito (2ª igreja edificada em Campo Grande), Salão Social e Associação Beneficente dos Descendentes de Tia Eva. Tais estruturas oferecidas à comunidade foram resultados de lutas, mobilizações e resistências ao longo de mais de 100 anos de história da comunidade, em busca de políticas públicas, reconhecimento, visibilidade e valorização.

Na figura 4 a seguir é possível observar que a comunidade se divide entre os descendentes das três filhas de Eva Maria de Jesus: Lázara, Sebastiana e Joana.

Figura 4 – Distribuição dos lotes dos descendentes de Lázara, Sebastiana e Joana (filhas de tia Eva)

Fonte: PLÍNIO DOS SANTOS, 2010, p. 328

Na figura 5 é possível compreender a extensão atual da comunidade, parte integrante do bairro Jardim Seminário, região norte da cidade e inserida na microrregião banhada pelo córrego Segredo.

Figura 5 – Imagem de satélite da área onde está localizada a comunidade

Fonte: PLÍNIO DOS SANTOS, 2010, p. 334